CRISPIM
Seu Crispim tinha setenta e seis anos de vida dura. Nascera e criara-se em Ouro Branco, distrito de Lavras da Mangabeira no estado do Ceará. Seu rosto denunciava os maus tratos da lida na região do Cariri. Era da roça por parte de pai, era semi-analfabeto por parte de mãe, porque se fosse por parte de pai seria um analfabeto completo. Pele ressecada, bochechas chupadas pela falta dos dentes, boca irrequieta, parecia mastigar as gengivas o tempo todo. Rugas de sobra, vista enfraquecida, mãos calejadas, já tremiam de Parkinson. Passos trôpegos, alma cansada. De pouca conversa, não deixava de ser simpático e de exalar candura. Morava há quarenta e cinco anos com Adalgisa de sessenta e cinco. Começaram sós e estavam sós, malgrado tivessem nascidos três ingratos e uma ingrata, nenhum morava com os velhos. Um mora na penitenciária, outro mora nos bares, outro mora não-sei-onde-faz-tempo e a última mora...Mora?.. Não mora!...Só namora... por aí.
Financeiramente o velhinho e sua esposa sex (sexagenária) viviam na dependência de suas aposentadorias. Até que dava. Tinham casa própria e não tinham vícios. Os salários mínimos, um de cada, eram só para comida e remédios. Roupas, móveis, essas coisas, achavam que já tinham o suficiente. Eram felizes? Talvez.
Um dia seu Crispim foi ao Banco do Brasil receber seu dinheiro quando a perua do caixa, exageradamente pintada, cheia de balangandãs, disse-lhe “Deu um probleminha na sua aposentadoria, seu Crispim. O senhor vai ter que resolver isso em Fortaleza, senão no mês que vem o senhor não recebe”. Péssima notícia.
Desconfortavelmente ele viajou a noite inteira. Chegou ao terminal rodoviário João Tomé, na capital às seis da manhã. Tomou um café escoteiro numa das lanchonetes daquele lugar, informou-se como chegaria ao centro da cidade de ônibus e foi. Às sete já estava na porta do INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). Alguém na rua lhe disse, após examinar todos os documentos que trazia em um saquinho de plástico transparente, que o seu problema deveria ser resolvido ali. Esperou numa longa fila até alguém lhe informar que casos de aposentadoria eram no IAPC (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários), pois tinha sido lá que seu avô, uma certa vez, resolvera um problema de aposentadoria também.
Depois de rodar várias quadras, uma alma bondosa lhe deu o endereço correto do IAPC. Meio cansado, não se importou muito que demorasse uma hora para ser atendido, pois as cadeiras eram confortáveis.
Chegou a sua vez. Uma moça por trás do guichê começou a pedir-lhe informações. Algumas foram fáceis, do tipo: seu nome, onde o senhor mora, mas quando começou a perguntar qual era exatamente o problema que ele tinha ido resolver as coisas complicavam. “Eu é que queria saber qual era o problema”, replicava seu Crispim à pergunta da moça. “Meu nome é Francisco Vieira Crispim, mas todo mundo me chama só de seu Crispim. Venho de Lavras da Mangabeira. Passei a noite viajando. A Dona Célia, aquela que é caixa do Banco do Brasil”- falou como se a moça a conhecesse. “Disse que eu tinha que vir aqui, senão no mês que vem eu não receberia meu aposento, e eu não posso passar sem esse dinheiro. Sabe como é, tenho que comprar os remédios da minha mulher...”.“Certo, certo seu Crispim, eu entendo. Deixe-me ver bem esses documentos que o senhor trouxe”, respondeu-lhe educadamente.
O ancião lhe passou o saco plástico com um monte de papéis, carteira de trabalho e outros documentos. Ela examinou bem e conseguiu entender do que se tratava. “Veja bem seu Crispim, vou lhe dizer o que o senhor tem que fazer. Não tem nada a ver com o IAPC. Preste bem atenção: É necessário ir ao INAMPS para fazer a perícia, leve esse documento”, disse separando um dos papéis. “Deixe a segunda via lá e traga a primeira chancelada, mas não esqueça de trazer o laudo. Já esse outro o senhor tem que pegar a assinatura e carimbo no IPEC, depois vai ao cartório reconhecer a firma e tirar cópia autenticada, leva tudo ao FUNRURAL. Eles dão um outro carimbo, o visto do chefe de seção e pronto, aí é só voltar ao cartório para averbar. Por último o senhor protocola no FUNRURAL e leva a segunda via para casa. Entendeu?”.
Seu Crispim foi colocando tudo de volta no saquinho de plástico enquanto fazia uma cara de coruja empalhada. Virou-se para ir embora. A cabecinha do decrépito deu um nó. Foi aí que ele virou-se novamente para a moça do guichê e disse mansa e pausadamente: “Moça, não faça isso comigo não. Eu nasci e me criei em Ouro Branco, um distritozinho de Lavras. Eu sei assinar meu nome e fazer conta, minha mãe me ensinou. Se a senhora disser assim para mim: Crispim apeie esse jumento, eu apeio. Sei fazer isso. Se a senhora mandar eu concertar uma cerca eu concerto. Se me mandar limpar uma roça, eu limpo. Se disser, Crispim pegue essa caixa aqui e ponha bem ali, eu ponho, mas essas coisas de IAP não sei o quê, chancela, averba. Eu não sei o que é isso não moça,,,sei não”.
Aquela moça corou de vergonha. Olhou bem para aquele velhinho, de cara chupada, cujo queixo fazia uma coreografia azucrinante, como se quisesse segurar a dentadura frouxa na boca. Duas lágrimas lhe correram dos olhos. “Desculpe, seu Crispim, espere um pouco”- disse levantando-se e caminhou em direção ao cara sentado atrás do birô grande da sala com toda pose de chefe. Falou não sei-o-quê para ele, depois apanhou sua bolsa e saiu de trás do balcão, pegou na mão do seu Crispim e disse: “Venha comigo seu Crispim, eu mesma vou com o senhor em todos esses lugares. Hoje eu não faço outra coisa a não ser andar com o senhor para resolver isso”.
E assim ela fez. Rodou com o velhinho em todas as repartições públicas daquele roteiro. Pediu urgência onde havia burocracia demasiada (claro, em todos os lugares), deixava-o sempre sentado enquanto aporrinhava o juízo de todos os burocratas folgados, até que deixou o seu Crispim na rodoviária com seu saquinho plástico cheio de documentos carimbados, averbados, assinados, visados, chancelados.
“Deus te abençoe minha filha, você é um anjo”.
O ônibus partiu. A moça chorava um choro gostoso. Estava feliz.
Financeiramente o velhinho e sua esposa sex (sexagenária) viviam na dependência de suas aposentadorias. Até que dava. Tinham casa própria e não tinham vícios. Os salários mínimos, um de cada, eram só para comida e remédios. Roupas, móveis, essas coisas, achavam que já tinham o suficiente. Eram felizes? Talvez.
Um dia seu Crispim foi ao Banco do Brasil receber seu dinheiro quando a perua do caixa, exageradamente pintada, cheia de balangandãs, disse-lhe “Deu um probleminha na sua aposentadoria, seu Crispim. O senhor vai ter que resolver isso em Fortaleza, senão no mês que vem o senhor não recebe”. Péssima notícia.
Desconfortavelmente ele viajou a noite inteira. Chegou ao terminal rodoviário João Tomé, na capital às seis da manhã. Tomou um café escoteiro numa das lanchonetes daquele lugar, informou-se como chegaria ao centro da cidade de ônibus e foi. Às sete já estava na porta do INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). Alguém na rua lhe disse, após examinar todos os documentos que trazia em um saquinho de plástico transparente, que o seu problema deveria ser resolvido ali. Esperou numa longa fila até alguém lhe informar que casos de aposentadoria eram no IAPC (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários), pois tinha sido lá que seu avô, uma certa vez, resolvera um problema de aposentadoria também.
Depois de rodar várias quadras, uma alma bondosa lhe deu o endereço correto do IAPC. Meio cansado, não se importou muito que demorasse uma hora para ser atendido, pois as cadeiras eram confortáveis.
Chegou a sua vez. Uma moça por trás do guichê começou a pedir-lhe informações. Algumas foram fáceis, do tipo: seu nome, onde o senhor mora, mas quando começou a perguntar qual era exatamente o problema que ele tinha ido resolver as coisas complicavam. “Eu é que queria saber qual era o problema”, replicava seu Crispim à pergunta da moça. “Meu nome é Francisco Vieira Crispim, mas todo mundo me chama só de seu Crispim. Venho de Lavras da Mangabeira. Passei a noite viajando. A Dona Célia, aquela que é caixa do Banco do Brasil”- falou como se a moça a conhecesse. “Disse que eu tinha que vir aqui, senão no mês que vem eu não receberia meu aposento, e eu não posso passar sem esse dinheiro. Sabe como é, tenho que comprar os remédios da minha mulher...”.“Certo, certo seu Crispim, eu entendo. Deixe-me ver bem esses documentos que o senhor trouxe”, respondeu-lhe educadamente.
O ancião lhe passou o saco plástico com um monte de papéis, carteira de trabalho e outros documentos. Ela examinou bem e conseguiu entender do que se tratava. “Veja bem seu Crispim, vou lhe dizer o que o senhor tem que fazer. Não tem nada a ver com o IAPC. Preste bem atenção: É necessário ir ao INAMPS para fazer a perícia, leve esse documento”, disse separando um dos papéis. “Deixe a segunda via lá e traga a primeira chancelada, mas não esqueça de trazer o laudo. Já esse outro o senhor tem que pegar a assinatura e carimbo no IPEC, depois vai ao cartório reconhecer a firma e tirar cópia autenticada, leva tudo ao FUNRURAL. Eles dão um outro carimbo, o visto do chefe de seção e pronto, aí é só voltar ao cartório para averbar. Por último o senhor protocola no FUNRURAL e leva a segunda via para casa. Entendeu?”.
Seu Crispim foi colocando tudo de volta no saquinho de plástico enquanto fazia uma cara de coruja empalhada. Virou-se para ir embora. A cabecinha do decrépito deu um nó. Foi aí que ele virou-se novamente para a moça do guichê e disse mansa e pausadamente: “Moça, não faça isso comigo não. Eu nasci e me criei em Ouro Branco, um distritozinho de Lavras. Eu sei assinar meu nome e fazer conta, minha mãe me ensinou. Se a senhora disser assim para mim: Crispim apeie esse jumento, eu apeio. Sei fazer isso. Se a senhora mandar eu concertar uma cerca eu concerto. Se me mandar limpar uma roça, eu limpo. Se disser, Crispim pegue essa caixa aqui e ponha bem ali, eu ponho, mas essas coisas de IAP não sei o quê, chancela, averba. Eu não sei o que é isso não moça,,,sei não”.
Aquela moça corou de vergonha. Olhou bem para aquele velhinho, de cara chupada, cujo queixo fazia uma coreografia azucrinante, como se quisesse segurar a dentadura frouxa na boca. Duas lágrimas lhe correram dos olhos. “Desculpe, seu Crispim, espere um pouco”- disse levantando-se e caminhou em direção ao cara sentado atrás do birô grande da sala com toda pose de chefe. Falou não sei-o-quê para ele, depois apanhou sua bolsa e saiu de trás do balcão, pegou na mão do seu Crispim e disse: “Venha comigo seu Crispim, eu mesma vou com o senhor em todos esses lugares. Hoje eu não faço outra coisa a não ser andar com o senhor para resolver isso”.
E assim ela fez. Rodou com o velhinho em todas as repartições públicas daquele roteiro. Pediu urgência onde havia burocracia demasiada (claro, em todos os lugares), deixava-o sempre sentado enquanto aporrinhava o juízo de todos os burocratas folgados, até que deixou o seu Crispim na rodoviária com seu saquinho plástico cheio de documentos carimbados, averbados, assinados, visados, chancelados.
“Deus te abençoe minha filha, você é um anjo”.
O ônibus partiu. A moça chorava um choro gostoso. Estava feliz.
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